sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Lübeck is made of chocolate covered marzipan.








Depois disto, a massapão deixou de ser um pedaço de cartão velho e seco feito numa pasta, para passar a ser uma massa húmida de sabor forte a amêndoa doce que, combinada com chocolate preto estaladiço, é uma verdadeira delícia.
Mas só em Lübeck.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Exercício de memória à volta do meu bairro.





Saio de casa, as chaves rápidas a rodar na minha mão, a deixar a porta nas minhas costas. Olho para as caixas do correio “não vale a pena. A rua.”. A rua. Olho para a esquerda para ver se alguém, viro à direita com as mãos nos bolsos.
Trago uma tshirt branca - um presente de terras outrora longínquas – e um casaco de cabedal e penso que esta roupa não cobre o frio que faz aqui. Continuo pelo passeio do lado direito da estrada com um só sentido de ida. Quase esbarro com um homem que, atrás da curva, se agacha para atar os sapatos. Trás roupas azuis escuras, um gorro de lã azul escuro, as roupas talvez um fato de treino. O homem baixa-se atrás de uns arbustos e eu quase em cima dele sem me assustar, quase sem o ver. Sim, o casaco era de fato de treino, tinha uma faixa larga cinzenta nas mangas azuis escuras quase brilhantes. E nesse momento, duas crianças a rir. Dois rapazes montados na mesma bicicleta também pequena, baixa demais para carregar os dois.
Continuo ao longo dos prédios que conheço, que me conhecem do caminho até ao super mercado. Atravesso a estrada para o passeio da esquerda, não aparece ninguém. O bairro inanimado, os prédios repetitivos na ausência de esperança de ver alguém e de serem vistos. As mesmas árvores agora mais nuas, menos amarelas, mais mortas e invisíveis. Não se ouvem os pássaros: European Magpie, Carrion Crow.
Viro à esquerda. As pessoas continuam longe. Vejo a fachada de um prédio de três andares revestida de andaimes. No segundo andar, naquele que fica mais à direita, mais próximo da estrada, mais próximo de mim, um andaime que suporta uma antiga bicicleta de fazer exercício. O metal pintado de amarelo claro, quase beige, a repousar num andaime. Não a pousar, a mostrar-se, a vangloriar-se por ser velho e capaz de usar uma estrutura onde os homens assentam para pintarem de branco as paredes para mostrar à rua sem pessoas que existe mais do que elas. Penso “devia ter trazido a máquina fotográfica. Ela está sempre comigo quando não a quero.”.
Mais à frente, um entroncamento. A atravessar a estrada, vinda da rua da direita, uma velhota com um casaco comprido que se arrasta com o seu cão pequenino de caracóis brancos. O cão caminha à frente dela, a trela faz um risco oblíquo na estrada, mas o cãozinho lento também, quase tão velho como a velha. Os dois prosseguem e deixo de os ver atrás dos arbustos. Chego ao entroncamento onde, à minha frente, parado na estrada está um homem gordo, relativamente novo, de óculos, sentado na sua mota preta com carro lateral. O homem gordo de roupa preta, capacete preto com óculos tipo aviador pousados na testa, fala com outro homem alto que, de costas, se deixa ficar no passeio a conversar sem entusiasmo, sem cara.
Viro à esquerda, o carro lateral com uma estrela vermelha na parte da frente. A minha cabeça só agora a virar também para a esquerda. Passo a velhota, passo entre o cão branco e uma árvore grossa que rompe o chão. Do outro lado da estrada um bloco pré-fabricado coberto de graffitis, sem entradas, sem saídas, sem buracos, só graffitis. Atrás dele, um parque infantil. O caminho continua em frente. Antes de chegar a outro entroncamento, oiço um barulho de algo tosco a roçar o alcatrão e, antes de olhar, para trás, um skater ao meu lado. Não ao meu lado, na estrada, ao meu nível. Um rapaz alto, magro, como que esticado, de cabelo loiro a espreitar por debaixo do boné azul escuro. Verde tropa? Não, azul escuro, mas igual aos que se fazem em verde tropa. Ele segue pachorrento na estrada que aponta em frente no entroncamento. Do lado esquerdo, à minha frente, vejo uma torre em tijolos claros que nunca tinha visto antes. Parece-me um depósito de água. Aproximo-me, vejo uma placa azul sob letras brancas que me diz que é uma igreja: Kirche. No meio da torre, um buraco que não se via antes, uma passagem, de onde, de repende, surge um homem jovem de cabelos loiros montado numa bicicleta. Salta do refúgio quando se apercebe da minha preseça, o olhar desconfiado que foge de bicicleta. Atravesso a torre, um pátio (não bem um pátio, porque não está cercado por todos os lados). Do lado direito, no mesmo material da torre, um edifício cilíndrico, baixo e largo, com uma pomba branca invertida a guardar o topo da porta. Não está ninguém. Já não sei bem onde estou, onde é o meu prédio. Sei voltar para trás, mas quero fazer um círculo. Vejo, lá à frente, um caminho aberto do lado esquerdo. Ao aproximar-me percebo que não passam de blocos de garagens que me impedem de passar. Volto atrás para seguir em frente. Do lado direito da estrada um conjunto de edifícios (talvez seis) com dois andares cada um. Olho. Uma escola. Uma escola sem pessoas, sem barulhos estridentes de crianças, sem as suas passadas rápidas a tentarem agarrar uma camisola de lá vermelha. Só uma criança, um miúdo ao pé da cerca a conversar com uma mulher velha que se senta no banco de uma bicicleta do outro lado da cerca, cá fora no passeio. Continuo, continuo enquanto olho para escola para tentar ver uma sala de aula, uma empregada a lavar o chão, a cozinheira a lavar a loiça com os restos do almoço, a directora refastelada num cadeirão a ler um grupo de folhas A4. Mas nada, uma escola que parece vazia.
Já sem a escola, continuo em frente à procura de uma rua que vire à esquerda. Oiço o barulho do aspirador de folhas (finalmente vêm aspirar este amontoado gigantesco de folhas amarelas, castanhas e negras!). De uma rua escondida do lado direito, sai um casal de velhotes. Ele com uma boina basca cinzento escuro, ela com um gorro felpudo azul claro. Caminham a bom passo enquanto trocam algumas palavras casuais. Parecem ter um destino.
Não há ruas à esquerda. À esquerda, só prédios desconhecidos. Vulgarmente desconhecidos. Os tijolos escuros confundem-se uns com os outros, as paredes brancas com janelas corridas de alumínio a salpicarem o espaço entre os tijolos. Sempre da mesma maneira. E nenhuma dessas paredes brancas é a minha. Apresso o passo. Vejo o último entroncamento lá à frente. O barulho do aspirador de folhas. Viro, finalmente, à esquerda, quando me deparado com o casal de velhote. Eles já do outro lado da estrada, espeditos. A boina basca cinzenta, o gorro felpudo agora mais azul, mais claro com um raio de sol escasso a bater-lhe. Eles tão jovens. Mais jovens que eu, a conhecer melhor o espaço, a saberem para onde vão e como hão-de ir. Eles à minha frente, eles que me ultrapassaram sem eu perceber, de forma impossível. Um caminho secreto? Uma passagem que só as gentes de cá conhecem? Entretanto, um autocarro, pessoas. Tantas pessoas, de repente. Quatro, cinco? O som do aspirador mais perto. Olho para o barulho e o aspirador de folhas deixa de ser um aspirador, é agora um daqueles tubos que sopram as folhas amarelas, laranjas, castanhas(as negras não conseguem levantar-se) para as arrumarem num montinho prestes a voar. E depois disso e depois de uns contentores cúbicos cor-de-laranja, um ringue. Dois homens que dão chutos numa bola. O ringue tão pequeno que, o homem que está numa das balizas, chuta e a bola muito rápido na outra baliza, no outro homem. No muro atrás deles, dois outros homens sentados. Uma camisola amarela e uma camisola cinzenta. Olho em frente e encontro, ao fundo, a plaquinha azul sustentada por um poste frágil “Kroogblöcke”, a minha rua ao virar da esquina. Quando olho, novamente, para o ringue, e a camisola cinzenta sentada agora de pé, a chutar, também, a bola.
Viro à esquerda pelo passeio da esquerda. As pessoas que observo da janela sempre do lado esquerdo da estrada, como se soubessem que é o lugar certo para se andar. E eu sempre do lado direito, porque dá mais jeito, porque é mais perto quando venho do metro. E eu agora, como todos eles, do lado esquerdo. A saber para onde vou e a saber que aquele é o lado certo, o lado de onde me vêem melhor das janelas de alumínio. Entro na porta do meu prédio. Olho para as caixas de correio”sei que não vale a pena, mas vou procurar na mesma” e, mais uma vez, a carta que deveria ter chegado há um mês a mostrar-se ausente, importante demais. Subo as escadas muito rápido sem saber porquê, essas escadas revestidas de um vinil azulado, esverdeado talvez. Cheguei, finalmente, à minha porta, as chaves rodam na minha mão, dão menos voltas do que estava à espera.
A casa agora mais confortável.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

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you are ridiculous in your misery










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terça-feira, 4 de novembro de 2008



No quarto, na única divisão da minha casa, a luz entra turva pela janela. A pouca luz invade a janela e fica presa nela, tímida, com medo de entrar, temendo ser notada. É essa luz que tinge o meu lençol branco ruço de cinzento, preenche as paredes estreitas de um cinzento incaracterístico, mortiço. A madeira agora cinzenta, o tapete cinzento com cabelos grisalhos, a minha mochila cinzenta. O quarto desbotado, quase apagado, num estado letárgico que dá pena.

Mas, ao mesmo tempo, todo este cinzento a parecer uma punição, todo o cinzento a castigar-me, a falar demasiado alto, a abafar a música que não consigo ouvir, a prender-me os movimentos. O cinzento a tornar as paredes mais densas, o tecto mais pesado; a transformar a casa num objecto em colapso, numa armadilha prestes a esmagar-me.

A luz que deixa de ser tímida, para ser ameaçadora. Como se lá fora um tempo perfeito, compassado, as folhas amarelecidas das árvores num chocalhar harmonioso, as pessoas lentas a caminharem com os olhos luminosos, como se os pássaros que as sobrevoam aterrassem nas suas órbitas para descansarem da fadiga da sua liberdade. E, então, essa luz que, ao tocar o vidro deste quarto, se torna impiedosa, má. O vidro do quarto envenena a energia contagiante da rua, como se fosse um filtro que rouba as borras da felicidade e me oferece estes restos moribundos.

É, então, que este quarto me diz

- não sou teu, não sou o teu abrigo.

As minhas poucas roupas espalhadas no espaço que resta, as meias estendidas no tapete, os fios num emaranhado volumoso, a pilha de livros debaixo da mesa sem uma arrumação mais confortável, as pulseiras, os metais em sacos de plástico numa disposição embaraçosa e pouco digna. Os objectos amontoam-se sem conteúdo, sem mim, quando

- não sou teu, não sou o teu abrigo.

E eu ainda adormecida, hipnotizada por

- não pertences aqui, aqui não é o teu mundo.


Aqui o tempo é indivisível. O tempo é um tronco inquebrável, maciço, sem ramos, sem saídas.
Estou, simplesmente, aqui. O meu corpo pesado e quebradiço amontoa-se nestas ruas e nestas casas sem deixar marca: sem rasgar uma folha no chão, sem esmagar o pavimento, sem desviar uma cadeira ao sentar-se. E a minha voz solta-se e esvanece-s, dissolve-se no ar.

Nada me esmaga e nada me eleva, é um viver simples e nu, sem a riqueza de viver desprovida do supérfluo. É uma simplicidade dispendiosa sem a modernidade do minimalismo.
Todo o tempo é o meu tempo. É um tempo demasiado meu, solitário. Não há o meu tempo no teu, o meu tempo a esconder-se, a abrigar-se do deles, não há o meu tempo agora para aquele que vem mais tarde.

É tudo tão presente e estático, é viver agora para se poder dizer que se foi.